domingo | 03.08 | 11:02 PM

Pais questionam riscos do tempo de tela diante de evidências científicas inconclusivas

Enquanto tentam limitar o uso de dispositivos pelos filhos, adultos enfrentam reações intensas e incertezas sobre os reais efeitos da tecnologia na saúde infantil

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O uso excessivo de telas tem sido associado a uma série de problemas, como aumento da depressão entre jovens, distúrbios de comportamento e dificuldades com o sono. A neurocientista britânica Susan Greenfield chegou a comparar o impacto do tempo de tela às mudanças climáticas: transformações sérias que a sociedade não estaria levando a sério.

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Contudo, um editorial do British Medical Journal contestou suas afirmações, classificando-as como infundadas e enganosas. Atualmente, cientistas no Reino Unido reforçam a ideia de que ainda faltam provas sólidas sobre os supostos danos causados pelas telas.

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Outro dia, enquanto fazia tarefas domésticas, entreguei o iPad do meu marido ao meu filho mais novo para mantê-lo ocupado. No entanto, logo comecei a me sentir desconfortável: não sabia há quanto tempo ele estava com o aparelho nem o que estava assistindo. Quando decidi encerrar o uso, ele reagiu com uma explosão de birra: gritou, chutou, agarrou o iPad e até tentou me empurrar com a força de uma criança de menos de cinco anos. Não foi o meu melhor momento como mãe, mas a intensidade da reação me alarmou, informa BBC News Brasil.

Tenho filhos mais velhos também, que usam redes sociais, jogam online e exploram a realidade virtual — o que, às vezes, também me preocupa. Eles costumam brincar entre si dizendo que precisam “tocar na grama”, ou seja, se desconectar e sair de casa.

Curiosamente, Steve Jobs, criador do iPad, ficou famoso por não permitir que seus próprios filhos usassem o dispositivo. Bill Gates também já declarou que impôs restrições ao uso de tecnologia em casa.

A ciência é mesmo conclusiva?

Pete Etchells, professor de Psicologia na Bath Spa University, revisou centenas de estudos sobre o tema. Em seu livro Unlocked: The Real Science of Screen Time, ele afirma que a base científica por trás das manchetes alarmistas é inconsistente e, em muitos casos, falha.

Segundo Etchells, “não há evidências científicas concretas que sustentem essas narrativas sobre os efeitos catastróficos do tempo de tela”.

Um estudo da Associação Americana de Psicologia, publicado em 2021, analisou 33 pesquisas feitas entre 2015 e 2019 e chegou à conclusão de que o impacto do uso de telas na saúde mental é pequeno. Mesmo em relação ao sono, uma revisão de 2024 envolvendo 11 estudos internacionais não encontrou evidências confiáveis de que a luz azul das telas afete o adormecer.

Um dos problemas mais citados pelos cientistas é a dependência do autorrelato: jovens sendo questionados sobre quanto tempo passaram nas telas e como se sentiram. Como Etchells aponta, correlação não significa causalidade, assim como vendas de sorvete e casos de câncer de pele sobem no verão, sem uma relação direta entre os dois.

Um estudo feito em parceria com um clínico geral mostrou que jovens com sintomas de depressão e ansiedade também passavam mais tempo sozinhos — o que pode ser o verdadeiro fator influente, e não necessariamente o uso de dispositivos.

Nem todo tempo de tela é igual

Foto: Getty Images

Outro ponto importante levantado por Etchells é a natureza do uso da tecnologia. “Tempo de tela” é um conceito vago. Está sendo usado para aprendizado? Socialização? Distração? Foi uma experiência passiva ou ativa?

Uma análise de mais de 11.500 exames cerebrais de crianças de 9 a 12 anos, conduzida por universidades dos EUA e Reino Unido, não encontrou relação entre o uso de telas e dificuldades cognitivas ou de bem-estar. Mesmo mudanças na conectividade cerebral observadas não foram consideradas prejudiciais.

O professor Andrew Przybylski, da Universidade de Oxford, e o professor Chris Chambers, da Universidade de Cardiff, compartilham essa visão: se houvesse um impacto tão grande, ele seria visível nos dados. Chambers reforça: “Se o cérebro humano fosse tão frágil, já teríamos sido extintos há muito tempo”.

Mas os riscos existem?

Foto: Getty Images

Nem Etchells nem Przybylski negam os perigos reais de conteúdos nocivos online. O receio de que a proibição excessiva torne as telas um “fruto proibido” também é debatido. Para alguns grupos, no entanto, a solução é clara.

A organização britânica Smartphone Free Childhood defende o adiamento do uso de smartphones até os 14 anos e o acesso a redes sociais até os 16. Já a psicóloga americana Jean Twenge acredita que a combinação de pouco sono, isolamento social e longas horas diante das telas forma “uma receita perigosa para a saúde mental”. Para ela, é essencial manter as crianças longe das telas o máximo possível.

Twenge também destaca que adolescentes de 16 anos têm cérebros mais maduros e ambientes sociais mais estáveis, o que facilita o uso mais consciente da tecnologia.

Pesquisas que reforçam os dois lados

Foto: Getty Images

Um estudo dinamarquês de 2024, com 181 crianças de 89 famílias, limitou o uso de telas a três horas semanais durante duas semanas. O resultado foi uma melhora nos sintomas psicológicos e no comportamento social das crianças. Porém, os autores ressaltaram a necessidade de mais pesquisas.

Outro estudo no Reino Unido, com diários de atividades, indicou que meninas que usavam mais redes sociais relatavam mais sentimentos depressivos.

Falta de consenso e culpa entre os pais

Foto: Getty Images

Ao conversar com o professor Etchells por chamada de vídeo, enquanto seu filho e cachorro entravam e saíam do cômodo, perguntei se as telas estão “reprogramando” o cérebro das crianças. Ele riu, dizendo que tudo que vivemos altera o cérebro: é assim que aprendemos.

Ele também reconheceu que a falta de diretrizes claras contribui para a insegurança dos pais e o surgimento de julgamentos entre eles. A pediatra Jenny Radesky, da Universidade de Michigan, resume bem essa tensão: “Muito do que é discutido hoje gera mais culpa do que esclarecimento”.

O episódio do meu filho mais novo, que tanto me incomodou, não foi tão diferente de outros momentos de frustração, como quando ele se recusa a largar uma brincadeira antes de dormir.

E agora?

Foto: Getty Images

As orientações oficiais ainda são inconsistentes. Nem a Academia Americana de Pediatria nem o Colégio Real de Pediatria do Reino Unido estipulam limites exatos para o tempo de tela. A OMS recomenda evitar o uso de telas por crianças menores de um ano e limitar a uma hora por dia até os quatro anos, com foco maior na atividade física do que no uso digital.

No fim das contas, faltam evidências definitivas. Isso divide a comunidade científica, enquanto a tecnologia avança rapidamente. Com redes sociais cada vez mais personalizadas, óculos de realidade aumentada e IA já sendo usada até como ferramenta terapêutica, o acesso à tecnologia pelas crianças não é apenas uma questão de escolha, é uma questão de tempo.

Se ela for realmente prejudicial, a ciência talvez demore para comprovar. E se não for, poderemos estar privando as crianças de uma ferramenta essencial para o futuro.

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