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Sandálias da Prada reacendem debate sobre apropriação cultural e herança indiana na moda

Apresentadas como novidade em Milão, calçado da grife italiana é comparado às tradicionais Kolhapuri chappals indianas e levanta questões sobre reconhecimento cultural e justiça econômica

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Quando a grife italiana Prada exibiu, no mês passado, durante sua apresentação de moda masculina em Milão, diversos pares de sandálias marrons com anéis de dedo e costura elaborada, observadores rapidamente notaram a semelhança com um calçado tradicional indiano de longa data, informa CNN Brasil.

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Apesar de divulgadas inicialmente como uma nova criação de luxo, muitas pessoas na Índia reconheceram nelas as Kolhapuri chappals, sandálias artesanais que remontam aos séculos XII ou XIII e são produzidas na região de Kolhapur, no estado indiano de Maharashtra.

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A princípio, a Prada descreveu os modelos apenas como “sandálias rasteiras de couro”, segundo o jornal The Guardian, sem mencionar a possível inspiração. A ausência de reconhecimento gerou críticas nas redes sociais e abriu um debate sobre apropriação cultural e o apagamento do trabalho de artesãos indianos.

Reconhecimento após críticas

Poucos dias após a repercussão, a Prada admitiu em carta enviada a uma entidade comercial indiana que sua coleção Primavera-Verão 2026 teve, de fato, inspiração no calçado tradicional do país. Em comunicado à CNN, a marca afirmou que “sempre celebrou o artesanato, a herança e o design”, e informou que se reuniu com fabricantes artesanais de calçados na Índia para discutir futuras possibilidades de colaboração.

A resposta rápida da Prada pode refletir o crescente interesse da indústria de luxo no mercado indiano, que está em forte expansão. Especialistas também veem o episódio como representativo de uma dificuldade recorrente das marcas ocidentais em se relacionar de forma respeitosa com tradições culturais não europeias.

Índia: mercado em ascensão e consumidor exigente

De acordo com a consultoria global Kearney, o mercado de luxo na Índia deve crescer de US$ 7,73 bilhões em 2023 para US$ 11,3 bilhões em 2028, impulsionado por uma classe média crescente, urbanização acelerada e uma nova geração de consumidores globalizados.

O estilista Gaurav Gupta destaca que esse público é diversificado, composto por herdeiros de grandes negócios, empreendedores digitais e artistas, que buscam mais do que simples logomarcas. Para ele, o consumidor indiano quer sentir que sua identidade cultural está sendo valorizada de forma genuína.

Marcas como Louis Vuitton, Balenciaga e Valentino abriram lojas em cidades como Mumbai e Delhi recentemente. Outras optaram por parcerias com criadores indianos, numa tentativa de se conectar mais autenticamente ao mercado local. Ainda assim, Gupta alerta: a desconexão ocorre quando as marcas enxergam a Índia apenas como um nicho comercial e não como uma interlocutora cultural.

Um problema recorrente

Inspirações oriundas da Índia são históricas na moda ocidental, como no caso do xadrez Madras ou dos pijamas, mas nos últimos anos as críticas à apropriação cultural aumentaram, em parte graças ao acesso ampliado à internet e ao crescimento das mídias sociais, além do fortalecimento do orgulho cultural.

Toolika Gupta, diretora do Instituto Indiano de Artes e Design (IICD), observa que os designers e artesãos indianos estão mais conscientes de seus direitos e exigem reconhecimento por seu trabalho.

Em 2019, a Gucci enfrentou críticas por vender um turbante azul por US$ 790 que se assemelhava ao turbante tradicional usado por membros da comunidade Sikh. O item foi retirado do site após protestos. Situações similares ocorreram com a Reformation e a H&M, cujos produtos evocaram o lehenga e o salwar kameez — trajes tradicionais indianos —, sem a devida contextualização ou crédito às referências culturais.

Além das marcas, ações de influenciadoras e plataformas também foram alvo de críticas. Um exemplo foi a empresa de aluguel de roupas Bipty, que descreveu o uso de dupattas — xales típicos — por mulheres brancas como uma “estética europeia”. Usuários sul-asiáticos reagiram com vídeos irônicos nas redes sociais, denunciando o apagamento cultural.

Produção invisibilizada

A relação entre a alta-costura e os artesãos indianos remonta ao século XVII, quando tecidos como algodão e seda da Índia eram buscados por alfaiates europeus. Hoje, grande parte da produção de bordados e tecidos de luxo é realizada por artesãos indianos, embora muitas vezes os produtos finais sejam montados na Europa e comercializados como europeus.

Para Imran Amed, fundador do The Business of Fashion, essa prática reduz a Índia a um centro de manufatura, deixando à Europa os créditos culturais e os ganhos econômicos. Amed enfatiza que, em um país onde o artesanato é o sustento de milhões, o reconhecimento não é apenas simbólico, mas também uma questão de dignidade e justiça econômica.

Segundo ele, a polêmica envolvendo a Prada vai além do calçado: “É uma reação acumulada a uma longa história de apagamento.”

Redefinindo narrativas

Designers indianos vêm ganhando visibilidade global. No Grammy 2023, Cardi B usou um vestido assinado por Gaurav Gupta, e Zendaya foi vista com um sari bordado à mão por Rahul Mishra. Kim Kardashian também apostou em peças de Manish Malhotra e Sabyasachi Mukherjee, este último o primeiro designer indiano a participar do Met Gala.

Gaurav Gupta considera esse movimento uma forma de os criadores indianos recuperarem suas narrativas, deixando de serem vistos apenas como alternativos “étnicos” para se afirmarem como inovadores.

A Kolhapuri chappal, peça que motivou a polêmica, é feita tradicionalmente com couro de búfalo curtido com corantes vegetais e possui um anel de dedo preso à tira em T. Com proteção de “indicação geográfica”, o calçado representa uma fusão entre tradição e funcionalidade — e simboliza o espírito artesanal da Índia rural.

Segundo a designer Shubhika Sharma, da marca Papa Don’t Preach, o reconhecimento cultural foi negligenciado no caso da Prada. Ela ressaltou que cerca de 10 mil famílias em Kolhapur vivem do comércio das chappals, muitas delas em condições econômicas precárias. Na Índia, o par pode custar entre US$ 5 e US$ 100; já os produtos da Prada costumam ser vendidos por valores entre US$ 700 e mais de US$ 2 mil.

“Tudo se resume a respeito”, afirmou Sharma. “Foi dada a devida valorização ao criador e à cultura de onde isso se originou?”

Exemplos de reconhecimento positivo

Algumas marcas ocidentais têm se destacado de forma mais respeitosa. Em 2023, a Dior realizou um desfile no Portão da Índia, em Mumbai, celebrando o artesanato local com peças que incluíam brocado Banarasi e alfaiataria kurta. Os bordados foram feitos pelo ateliê indiano Chanakya International, devidamente creditado.

A colaboração entre Chanakya e a diretora criativa Maria Grazia Chiuri foi considerada pelo The Business of Fashion como “atenciosa” e não apenas simbólica, reconhecendo o valor e a origem do trabalho artesanal.

Mais recentemente, a Nike lançou sua primeira parceria com uma marca indiana, a NorBlack NorWhite, criando uma linha vibrante de roupas inspirada em técnicas de tie-dye. A iniciativa foi bem recebida pelo público local.

Para o fundador da conta Diet Sabya, crítica da indústria de moda, a visibilidade é apenas o começo: “Equidade é o objetivo final. Não basta ver a Índia como o próximo grande mercado de luxo, é necessário parar de tratá-la como uma curiosidade exótica.”

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