Marcos Cabral de Oliveira, 50 anos, carrega marcas que não se apagam. A fome no sertão de Caetité (BA), a fuga com a mãe de criação para Brasília nos anos 1980, e os cortes nas mãos causados pelo trabalho infantil no lixão da Vila Estrutural são partes de uma infância interrompida. Mas ele conseguiu mudar o destino dos filhos. “Hoje tem até lei pra isso”, diz Marcos, referindo-se, mesmo sem nomeá-lo, ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completou 35 anos no sábado (13).
Marcelo, seu filho mais velho, nasceu quando o ECA já estava em vigor. Estudou, foi jovem aprendiz e tentou até a faculdade. Hoje é lojista e voluntário no Instituto Viver, ONG da Vila Santa Luzia criada para afastar crianças do ciclo de vulnerabilidade e do trabalho no lixão. “Eu brincava aqui enquanto meu pai catava material. Muitos colegas se perderam na vida”, relata.
Com o apoio da psicóloga Fabiane Ferreira e da assistente social Maxilene Duarte, o instituto oferece atividades no contraturno escolar, refeições e suporte emocional às crianças e famílias. “Nosso objetivo é mostrar que o lugar da criança é na escola, não no trabalho”, explica Fabiane.
O ECA nasceu em 1990, fruto da mobilização da sociedade civil nos anos seguintes à Constituição de 1988. “Foi uma ruptura com a ideia de que crianças eram mini-adultos. Passaram a ser reconhecidas como sujeitos de direitos”, explica a pesquisadora Ana Potyara, diretora da ONG Andi Comunicação e Direitos. A pressão da mídia e de nomes como Gilberto Dimenstein e Âmbar de Barros contribuiu para que o Congresso aprovasse a lei, informa Agência Brasil.
Hoje, o Brasil ainda enfrenta desafios: 1,6 milhão de crianças e adolescentes estão em situação de trabalho infantil, segundo dados de 2023 do IBGE. Dessas, 586 mil em condições degradantes. Para o diretor de Proteção da Criança do Ministério dos Direitos Humanos, Fábio Meirelles, “o combate à pobreza é essencial para erradicar o trabalho infantil e garantir o princípio da proteção integral”.
O governo realiza nesta semana, em Brasília, o seminário “35 anos do ECA: Justiça Social e Ambiental”, que inaugura uma nova agenda de políticas públicas voltadas à infância. A secretária nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Pilar Lacerda, ressalta que o estatuto é resultado da “luta de movimentos sociais, militantes e crianças por justiça”.
Exemplos como o da catadora Ana Cristina Rodrigues, 39 anos, reforçam o impacto do abandono estatal. Analfabeta, trabalhou no lixão, foi presa e hoje tenta escrever um novo capítulo. Mora em um barraco na Vila Santa Luzia e lidera campanhas comunitárias por doações e educação. “Fiz coisas erradas. Quero que meus filhos tenham direito como todo mundo”, diz. Três deles estão na escola.
O ECA não resolveu tudo, mas mostra que uma infância digna pode mudar gerações. E histórias como a de Marcos provam que, quando há oportunidade, o futuro pode ser reescrito.