quinta-feira | 07.08 | 4:03 PM

Fontes de Salvador: negligenciadas pelo poder público, lembradas pela necessidade

O livro Caminho das Águas, publicado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), mapeou ao menos 41 fontes espalhadas por Salvador, cada uma carregando sua própria história, lendas e percursos subterrâneos

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Na capital baiana, entre casarões coloniais, vielas, ladeiras, bairros suburbanos e lugares inimagináveis, brotam ainda as águas de fontes – muitas seculares – que teimam em correr: são hoje equipamentos que guardam histórias, memórias e também a beleza arquitetônica de uma cidade moldada pela geografia da abundância hídrica. Atualmente, Salvador vê esses mananciais urbanos cada vez mais abandonados e negligenciados, cobertos de mato e detritos, servindo apenas a uma população vulnerável e esquecida pelo poder público – embora muitas dessas fontes estejam localizadas em áreas tombadas pelo IPHAN.

 

 

Durante os dois dias de suspensão do fornecimento de água pela Embasa em diversos bairros de Salvador, ontem e anteontem, essas fontes urbanas tornaram-se, mais uma vez, protagonistas da sobrevivência. Foi possível presenciar longas filas de moradores com baldes e galões em busca do líquido essencial para o cotidiano, como ocorreu na Fonte da Liberdade na noite de quinta-feira. Esse cenário, no entanto, não é novo: em dias comuns de abastecimento, moradores de rua, famílias em situação de vulnerabilidade e trabalhadores informais recorrem diariamente a essas bicas para lavar o rosto, escovar os dentes, encher baldes, tomar banho. Água que, embora não potável, ainda serve para manter a dignidade de quem perdeu quase tudo.

 

 

“Aqui na Liberdade a gente mesmo limpa e cuida da fonte. Muita gente usa, graças a Deus que existe. Se depender da prefeitura, nada acontece, isso vira deposito de lixo”, conta o morador Jonatan Monteiro.

O livro Caminho das Águas, publicado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), mapeou ao menos 41 fontes espalhadas por Salvador, cada uma carregando sua própria história, lendas e percursos subterrâneos. Algumas são mais conhecidas, como a Fonte da Bica do Tororó, a Fonte do MAM (a primeira registrada na capital baiana), a do Largo da Madragoa e da Água Brusca – atualmente gradeada e tomada pelo mato. Outras permanecem em completo anonimato, escondidas em quintais, vielas ou becos, resistindo ao avanço urbano como pequenos relicários do tempo.

 

 

Um exemplo é a nascente que atravessa o casarão onde vive Simone Salvador, no Taboão, em plena Ladeira do Centro Histórico. Trata-se de uma das três fontes da região, ligadas ao mesmo veio de água, cuja origem remonta às elites do século XIX. Há quem afirme que um túnel subterrâneo conecta o local ao Convento de São Francisco — passagem de água e de lenda.

O que deveria representar orgulho e valorização patrimonial se transforma, com frequência, em símbolo de descaso. Muitas dessas estruturas estão mal cuidadas, sem sinalização, com o entorno degradado e invadidas por lixo ou esgoto. Para o professor, arquiteto e urbanista Armando Branco, o cenário reflete um abandono histórico. “Salvador nasceu da água, mas está de costas para ela. As fontes não são apenas nascentes: são espelhos do tipo de cidade que escolhemos ser. Quando negligenciamos a água, negligenciamos a própria vida”, afirma o especialista em paisagem soteropolitana.

Armando reforça a relação intrínseca das fontes com a identidade de Salvador. “Elas são mais que pontos d’água. São marcos fundacionais da cidade. Ignorá-las é apagar parte da nossa história. É impossível falar de Salvador sem mencionar suas fontes — elas contam os primeiros capítulos da cidade e revelam como ela se formou e se expandiu.”

Seman – Segundo a Secretaria Municipal de Manutenção (Seman), desde o ano passado foram realizadas intervenções nas fontes do Santo Antônio, Baluarte, Taboão (ou dos Padres), Gravatá e Preguiça. Já a Fonte do Munganga, na Avenida Jequitaia, está com projeto de recuperação em fase de revisão pela Fundação Mário Leal Ferreira, devido ao risco de colapso estrutural.

A Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) foi procurada para esclarecer o estado das fontes e a qualidade dos lençóis freáticos na capital, mas não respondeu até o fechamento desta reportagem.

Fonte limpa – Em bairros como Fazenda Grande do Retiro, moradores ainda recorriam à chamada “Fonte da Vida”, onde a água era considerada potável — uma raridade. Em 2010, reportagem de minha autoria no jornal A Tarde apontou que apenas três das 41 fontes catalogadas à época continham água própria para consumo humano. A maioria apresentava contaminação por coliformes fecais ou altos níveis de nitrato, substância potencialmente cancerígena.

Naquele mesmo ano, o livro O Caminho das Águas em Salvador, lançado pelo Centro Interdisciplinar da Ufba, traçou um panorama alarmante: fontes desativadas, poluídas, transformadas em depósitos de lixo ou banheiros a céu aberto. Quinze anos depois, nas fontes visitadas pela equipe da Tribuna da Bahia, a situação continua igual ou pior. Fica a dúvida: se em 2010 apenas três fontes eram potáveis, ainda restaria alguma hoje?

 

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Fonte: Tribuna da Bahia

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Foto: Romildo de Jesus/Tribuna da Bahia

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