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Bebida do São João: licor de Cachoeira se torna tradição e esquenta economia de pequena cidade baiana

Cidade de pouco mais de 29 mil habitantes conta com, ao menos, 29 produções da bebida

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Em Cachoeira, cidade do recôncavo baiano, existe, em média, uma produção de licor a cada 1 mil habitantes. Se levarmos em conta a quantidade de gente envolvida em cada produção – dentre grandes e pequenas – e mais aqueles que fornecem matéria-prima para os fabricos, não seria exagero dizer que grande parte da população cachoeirense tem um pé no licor. A bebida que dá fama ao município de pouco mais de 29 mil habitantes vive seu auge de comercialização no período do São João, talvez porque seja quando as cidades do Nordeste ficam um pouco mais frias à noite, abrindo espaço para a bebida quente.

O Terraiá é o São João oficial do Terra, patrocínio master de Amazon e com cobertura patrocinada por Kwai, Loterias CAIXA, Garnier e Azulzinha, maquininha da CAIXA.

O ritmo pacato de cidade pequena, com casinhas coloridas e construções da época colonial, contrasta com a enormidade da fábrica do Arraiá do Quiabo, um dos maiores produtores de licor da região, juntamente com o Licor Roque Pinto. Ali, um grande galpão preenche parte dos hectares pertencentes à marca. Na entrada, em um dia comum de semana, aglomeram-se pequenos grupos de pessoas que vão, pessoalmente, comprar seus licores.

É o que faz o frei João da Maculada, da comunidade dos Irmãos de São João, localizada em Salvador. “É o melhor licor da região.Todo ano eu venho comprar porque no Convento dos Perdões já tem uma tradição, que é o Arraiá dos Perdões. É aberto ao público para toda a comunidade, e bastante gente que vem pro nosso forró, então não pode faltar o licor”, diz.

Frei João da Maculada vai de Salvador para Cachoeira, todos os anos, para comprar licor no Arraiá do Quiabo
Foto: Maria Clara Andrade/Terra

O frei voltará carregado para a capital baiana, cerca de 1h30 distante de Cachoeira, com 30 garrafas da bebida, destinadas, principalmente, para os frequentadores da festa junina de sua paróquia. Mas ele, na medida do possível, diz que também experimenta o licor. O de maracujá é seu preferido.

A ida ao Arraiá do Quiabo já é uma tradição para alguns dos compradores, mas há outras opções de conseguir a bebida. Em Salvador, existem diversos pontos que revendem os licores feitos em Cachoeira e, atualmente, há até um site autorizado pelos produtores da região que comercializa o produto para todo o Brasil.

A cadeia produtiva do licor
Vanessa Tays, assessora de comunicação do Arraiá do Quiabo, estima que 300 empregos sejam gerados de forma direta e indireta pela fábrica. “Desde os nossos produtores de fruta, álcool, cachaça… Vou botar 300 por baixo. Indiretos devem ter ainda mais pessoas, por ser uma escala industrial. Então a gente tem pessoas trabalhando em todos os segmentos profissionais. Inclusive, a gente conta com toda a estrutura de refeitório, tudo muito organizado mesmo”, afirma.

Este número considera a força de trabalho durante o período que antecede as festas juninas, em que mão de obra temporária também é contratada. São três meses de vendas que têm a missão de suprir em receita a falta de demanda para o resto do ano. “Passou os três meses, já foi. Aí você vai vendendo de grão em grão”, resume Alison Daltro, filho de Antônio “Quiabo”, que é quem criou o licor do Arraiá do Quiabo há pouco mais de 30 anos.

Vanessa e Alison querem “dessazonalizar” o consumo de licor
Foto: Maria Clara Andrade/Terra
Com um público já fiel e o reconhecimento no mercado, a meta da marca para os próximos anos é transformar o licor em uma bebida menos sazonal. “Apesar de ser uma bebida quente, assim como o vinho, a galera também toma gelado. Os licores cremosos estão vindo muito nessa questão de as pessoas colocarem para gelar. E tem também a opção de fazer algumas preparações de drinks, que é uma outra coisa que o licor tem ganhado agora mais possibilidades”, considera Vanessa. No Instagram oficial da marca, ela diz que estão apostando em publicar receitas do tipo.

 

Era de ouro do licor?
Quem vê o sucesso que faz, deve imaginar que tudo são flores para os produtores de licor da região. Mas não é bem assim. Para os pequenos, o licor ainda não é capaz de ser o único provento, apesar de toda a dedicação que ele requer.  Moisés Pinheiro, sócio do Licor Cachoeira Colonial, se divide entre os afazeres ligados à bebida pela manhã e à tarde trabalha em uma fábrica de outro ramo industrial na cidade.

Moisés decidiu chamar o sabor que mistura umbu com kiwi de “Umbuky” para despertar curiosidade de quem lê
Foto: Maria Clara Andrade/Terra
“A gente escolheu o produto certo, na hora errada”, resume Moisés. Segundo ele, o caixa da empresa sofreu um grande baque quando, em junho de 2022, às vésperas do São João daquele ano, as fábricas de licores de Cachoeira foram interditadas por não seguirem as recomendações sanitárias do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).

A operação foi um choque e, só a partir dela, que os produtores de licor da cidade começaram a se organizar de forma estruturada. Hoje, existe a Associação de Produtores de Licor de Cachoeira, da qual Moisés é vice-presidente, e o presidente é Roseval Pinto, filho de Roque Pinto, criador do mais tradicional licor da região. Quinze dos 29 produtores conhecidos estão vinculados à associação.

“Hoje, a gente trabalha do mesmo jeito que a gente já trabalhava antes. A diferença é que a gente não tinha alguns equipamentos que eles exigiam. No caso, a gente não pôde mais trabalhar com bombonas plásticas, teve que passar para o inox, por exemplo. Mas tudo isso demanda custo”, afirma Moisés.

Sua entrada no ramo do licor aconteceu em um momento de incerteza pessoal. Havia ficado desempregado e sua avó lhe passou a receita dos licores que fazia, sugerindo que ele transformasse a criação familiar em negócio.

Família, inclusive, é a palavra que está por trás da maioria das produções de licor em Cachoeira. Apenas neste pequeno texto, já foram citados filhos e, agora, o neto de uma produtora de licor. Na empresa de Moisés, ele é sócio de seu cunhado e o irmão dele. A sua esposa e seu sobrinho ajudam na produção, assim como seu filho, que tem 16 anos, e, da forma que pode, também auxilia nas vendas. Em sua pequena empresa só é contratada mão de obra no período do São João, quando precisa.

 

Por que Cachoeira?

Cachoeira é cortada pelo rio Paraguaçu e foi uma importante rota comercial baiana durante a era colonial
Foto: Maria Clara Andrade/Terra
A geografia e importância de Cachoeira na história da Bahia pode trazer algumas pistas do porquê a cidade se tornou o pólo do licor. Entre os produtores, as explicações sobre o início da tradição variam. E a verdade é que não há uma certeza. “As coisas divagam muito, porque, de fato, não temos um ponto de consenso”, afirma o historiador Rafael Dantas.

Dantas foi coordenador por três anos do Turismo Cultural, Histórico e Religioso do Estado da Bahia e, nessa época, desenvolveu pesquisas em cidades do recôncavo baiano para resgatar tradições e pensar em atrativos voltados para o turismo. Sobre Cachoeira, ele explica que a cidade era uma das principais rotas comerciais durante o período colonial por ser cortada pelo Rio Paraguaçu, e, assim, servir de escoamento.

“No próprio século XIX, era uma cidade que era conhecida em diversos lugares da Europa e outros tantos lugares do mundo, até mesmo mais do que outras cidades do Brasil, na época do Império do Brasil”, diz. Por essa importância geográfica, Cachoeira era cercada por engenhos de açúcar abastecidos por mão de obra escravizada.

“Isso marca muito aquele contexto. Então, quando a gente fala das bebidas, seja aguardente, seja licor, seja o melaço, seja qualquer outra coisa, estamos falando do engenho, estamos falando do açúcar, estamos falando dessas produções que estão inseridas nesse processo”, complementa Dantas.

Ele diz ainda que não é possível afirmar quando a produção de licor começou na região, mas, do ponto de vista das recordações orais dos mais antigos, ela se torna mais expressiva no final do século XVIII. Já a relação com a festa de São João se consolida no final do século XIX, início do XX.

São 24 sabores vendidos pelo Arraiá do Quiabo. Quem vai diretamente à fábrica pode degustar dos sabores à vontade
Foto: Maria Clara Andrade/Terra
Para Vanessa, cachoeirense e assessora de comunicação do Arraiá do Quiabo, a tradição do licor se tornou forte porque as pessoas faziam suas produções em casa e presenteavam os amigos com a bebida.

“Essa produção do licor mesmo tem uma relação muito com a questão africana. Essa produção dessas bebidas, desses destilados, devido ao processo de colonização… mas o grande nome que começou aqui era Roque Pinto, ele produzia e acabava dando para as pessoas o licor”, diz.

Hoje, com a fama que os licores de Cachoeira ganharam, cada um busca formas de se destacar. A variedade de sabores é uma delas. No Arraiá do Quiabo, são 26 opções disponíveis, entre licores tradicionais e cremosos.

Já no Licor Cachoeira Colonial, com uma capacidade de produção menor, a ideia foi criar sabores diferentões, como o Umbuky, mistura de umbu com kiwi, e o Sangue Latino, de frutas vermelhas com pimenta. O carro-chefe, no entanto, continua sendo o tradicional jenipapo, considerado por Moisés, a “origem” de todos os licores.

Fonte: Terra