“Responder uma carta é um gesto de amizade”, dizia o escritor baiano Jorge Amado à filha, a também escritora Paloma Jorge Amado. Fiel a esse princípio, Jorge não apenas respondia a todas as cartas que recebia, como também arquivava cuidadosamente milhares delas. Todo esse material hoje compõe um extenso acervo sob a guarda da Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador (BA), cuja dimensão ainda não foi totalmente catalogada.
Esse rico conjunto de correspondências inclui trocas com escritores, políticos, artistas e sua esposa Zélia Gattai. Até mesmo bilhetes foram preservados, muitos com anotações do próprio autor, como “para guardar”, indicando o valor documental e afetivo do conteúdo, informa Agência Brasil.
“Jorge Amado tinha uma preocupação extraordinária em guardar. Tanto que muitas cartas trazem escrito, logo acima, as palavras guardar ou arquivar. Ele tinha cuidado com o acervo, que passou para a fundação. A gente trabalha nele há muitos anos. E é um acervo delicado, porque há coisas que não podem ser abertas, por serem [muito] pessoais”, afirmou Bete Capinan, coordenadora editorial da fundação. “É uma correspondência imensa e até hoje a gente não conseguiu chegar ao fim.”
Parte do material já foi publicada, como nas obras com cartas trocadas com José Saramago e Glauber Rocha. Agora, a Fundação Casa de Jorge Amado lança uma coleção de livros com base nesse acervo, publicada pela Casa de Palavras, seu braço editorial.
O primeiro volume da coleção, intitulado “Cartas: Dias Gomes – Jorge Amado”, foi lançado na noite de 7 de agosto, na biblioteca do Palacete Tira-Chapéu, durante a Festa Literária Internacional do Pelourinho (Flipelô), em Salvador. A publicação reúne a correspondência trocada entre Jorge Amado e o dramaturgo e autor de telenovelas Dias Gomes, homenageado da atual edição da Flipelô.
“Esse é o livro que dá início à Coleção Um Gesto de Amizade. A gente pretende publicar outros”, informou Angela Fraga, presidente da Fundação Casa de Jorge Amado, entidade responsável pela organização da Flipelô.
Segundo ela, o conteúdo do livro evidencia uma relação marcada por cumplicidade e leveza. “Numa época em que não existia e-mail e em que até o telefone era difícil, eles realmente se correspondiam muito”, destacou.
A seleção, organização e anotações da obra foram feitas por Bete Capinan e por Paloma Jorge Amado, que também integra o Conselho da Fundação. De acordo com Paloma, os próximos volumes da coleção vão reunir as cartas trocadas entre Jorge Amado e os escritores Érico Veríssimo, Carlos Drummond de Andrade e João Ubaldo Ribeiro. O livro sobre João Ubaldo poderá ter cerca de 400 páginas, tamanha a quantidade de material reunido.
Paloma compartilhou a história da descoberta desse acervo: “Perguntei para a Emília, filha mais velha do João Ubaldo, se ela tinha as cartas do papai para o João, porque a gente tinha as do João para o papai. E ela me disse: ‘Menina, papai não era organizado como Jorge, era uma bagunça, até hoje a gente não conseguiu ver esse acervo e tal, mas eu agora vou passar o carnaval na ilha e vou dar uma olhadinha lá’. Quando ela chegou na ilha, encontrou uma estante com várias coisas e, entre elas, uma pasta grande escrita ‘correspondência de Jorge Amado’. Era a única coisa organizada lá.” Para Paloma, o livro com João Ubaldo será desafiador, mas recompensador: “Ele é divertidíssimo. É não só engraçado, como é de chorar também de emoção. E é uma aula de escritura.”
Estilo irônico e temas diversos
Entre as correspondências publicadas no novo livro, há passagens que revelam o tom bem-humorado e irônico de Dias Gomes, conhecido por obras como Roque Santeiro e O Bem Amado. Em uma carta de junho de 1995, ele escreveu a Jorge Amado:
“Caro compadre. Você concedeu-me o mais eufórico despertar de toda a minha vida, ao telefonar-me, há poucos dias, às 8h da matina, para elogiar meu despretensioso romance, Decadência. É bem verdade que, no generoso propósito de me estimular, você pode estar fazendo um grande mal à literatura brasileira, incitando-me a cometer outros.”
A neta de Dias Gomes, a cantora Tatiana Dias Gomes, participou do lançamento do livro e falou à Agência Brasil sobre a emoção de ler as cartas do avô: “Eu achei o livro lindo, que mostra uma amizade profunda. E a gente vai vendo essa amizade se aprofundando cada vez mais. Ao ler as cartas do meu avô, isso me deu muita saudade, porque vi ali o jeitinho dele falar: seu humor e seu jeito irônico e debochado.”
Tatiana ainda comentou sobre uma carta assinada por seu avô e sua avó, Janete Clair: “Tem uma carta que eu achei bonitinha, em que ele escreve junto com a minha avó. Essa me chamou a atenção por ver o jeitinho dela junto com ele.”
As cartas abordam uma ampla gama de assuntos: livros, novelas, censura, viagens e até temas mais inusitados, como a ida de Dias Gomes à Disney. Bete Capinan destaca um trecho peculiar: “Tem um trecho do Dias Gomes contando para Jorge Amado que ele estava indo para a Disney levar a filha Mayra e que ele nunca pensou que, como comunista, ele iria para a Disney”. Tatiana confirmou a lembrança com humor: “Eu lembro que ele gostava muito de ir para a Disney e a gente achava isso engraçado, porque ele se divertia muito. Ele falava: ‘nossa, lá eu viro criança’.”
Na carta, o próprio Dias Gomes afirma: “A verdade é que na Disney, os pais se divertem muito mais que os filhos. Todos temos, afinal, uma criança dentro de nós.” A Flipelô segue até o domingo (10), no centro histórico de Salvador, com entrada gratuita e ampla programação cultural. Mais informações estão disponíveis no site oficial do evento.

